Internacional
Opinião
Charlie Hebdo: a culpa da Arábia Saudita
O problema não é o Islã, mas do Islã.
O país que cuida do berço da religião, firme aliado das potências ocidentais,
exporta a hedionda ideologia por trás do terror
por José Antonio Lima — publicado 08/01/2015
15:59, última modificação 09/01/2015 17:50
Jean-Yves le Drian (à
esquerda), ministro da Defesa da França, durante reunião com o príncipe
herdeiro saudita, Salman bin Abdulaziz al-Saud, em 4 de janeiro, três dias antes
do atentado. A França é aliada do governo que exporta uma ideologia extremista
Poucas ações são mais repugnantes do que homens armados invadirem
a redação de um jornal e assassinarem pessoas cujo ofício era exercer o
inalienável direito à liberdade de expressão. A covardia ocorrida na
quarta-feira 7 em Paris, na sede do satírico Charlie
Hebdo, terá uma repercussão profunda, mas é improvável que o debate público
e as ações governamentais resultantes do massacre atinjam o cerne da questão: a
origem da ideologia doentia que dá suporte aos terroristas da capital francesa.
Os
assassinos de Paris tinham uma clara missão. Desejavam executar os responsáveis
pelo veículo que tinha, entre outros alvos também legítimos, o Islã.
Certamente, levaram em conta a importância simbólica de um órgão de imprensa
para uma sociedade democrática. Ao atacá-lo, desejavam aterrorizar as
sociedades vistas por eles como decadentes, por não compartilharem sua sórdida
visão de mundo. Buscavam, também, criar um clima de tensão capaz de ampliar a
capacidade de recrutamento do jihadismo. O caos e a morte são partes
indissociáveis do ambiente no qual se sentem confortáveis.
Irremediavelmente,
a culpa pela carnificina é dos homens que planejaram e realizaram a barbárie.
Cabe notar, entretanto, que a ideologia por eles defendida viceja em situações
específicas. Ao contrário do que afirmam alguns islamofóbicos, rapidamente
vindos à superfície diante da tragédia, o problema por trás desse tipo de
terror não é o islã. Não há dúvidas, porém, de que se trate de um problema do
Islã, ainda que de uma fração minoritária, mas incrivelmente poderosa e
influente.
A gênese das ideias dos terroristas de Paris, assim como a de
grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, está na Arábia Saudita. Desde 1932,
quando foi fundada, até hoje, a Arábia Saudita existe como Estado graças a uma
aliança formada por uma família, os Bin Saud, e um establishment religioso inspirado no teólogo
Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab.
Al-Wahhab
viveu entre 1703 e 1792 e era fortemente influenciado pelo teólogo do século
XIII Taqi al-Din ibn Taymiyya, que pregou a retomada do passado glorioso da
civilização muçulmana por meio de um retorno às origens do Islã, cuja base
seria a interpretação literal do Alcorão e um estilo de vida igual ao de Maomé
– preceitos da doutrina hoje conhecida como salafismo. Como discípulo de Ibn
Taymiyya, Al-Wahhab desenvolveu o wahabismo, a versão saudita do salafismo.
Nos anos
1940 e 1950, o florescimento da indústria petrolífera, além da parceria com os
Estados Unidos e o mundo ocidental, potencializou essa doutrina. Dona de
reservas gigantescas de petróleo, a Arábia Saudita passou a exercer um papel de
enorme relevância no mundo e decidiu exportar sua ideologia. Esse processo foi
facilitado a partir dos anos 1970, quando as receitas do petróleo explodiram. A
exportação era (e ainda é) feita por meios como a inclusão de clérigos
wahabistas no corpo diplomático saudita e pela fundação de instituições e
escolas islâmicas (como as que deram origem ao Taleban no Afeganistão e no
Paquistão nos anos 1980).
Ao se alastrar pelo mundo, a ideologia saudita influenciou
inúmeras sociedades, mas também foi influenciada. A mais importante das
transformações ocorreu no Egito, sob as mãos de Sayyid Qutb. Foi Qutb o
responsável por lançar as justificativas teóricas para classificar os líderes
políticos muçulmanos que atuam descumprindo a lei islâmica (sharia) como
infiéis (kafir) e declará-los excomungados (takfir), passíveis de
serem alvo da jihad, e,
assim, executados.
Este
“avanço” ideológico criou um monumental desafio para os sauditas: hoje, a
principal contestação ao regime da família Saud vem de wahabistas que não
consideram o governo suficientemente islâmico.
Para contê-los, o governo usa dois expedientes: por um lado, usa
seus petrodólares para proporcionar inúmeros benefícios sociais a suas
populações. Para quem ainda assim insiste em ser dissidente, jihadista ou não,
há um draconiano sistema de
controle social e político, que subjuga as mulheres, inclui uma polícia moral e
punições como crucificações e decapitações. Responsável por cuidar do lugar
onde o Islã nasceu – as cidades de Meca e Medina –, a Arábia Saudita pune os
"ataques à religião" com atroz severidade,
legitimando ao resto do mundo muçulmano a punição da blasfêmia. A mais recente
vítima é o blogueiro liberal Raif Baddawi. Na quinta-feira 8 de janeiro, a
Anistia Internacional confirmou que Baddawi foi condenado a mil chibatadas por
"insultar o Islã" – 50 por semana, durante 20 semanas.
Se a fúria jihadista é controlada em casa, no exterior ela é
libertada. Comumente, a exportação do jihadismo foge ao controle, sendo a
Al-Qaeda exemplo clássico e o Estado Islâmico, o mais recente.
Se é
claro que a Arábia Saudita está no cerne do que ocorreu em Paris na
quarta-feira 7, é óbvio, também, que o país não se encontra sozinho nessa
condição. Seus gêmeos ideológicos – Catar, Emirados Árabes Unidos e Kuwait –
agem da mesma maneira, mas com menos dinheiro e influência. Além disso, a
aliança da família Saud com os EUA e os países europeus, entre eles a França,
continua sendo fundamental para ambos os lados. Juntos, Estados Unidos e União
Europeia apoiam de maneira firme as ditaduras do Oriente Médio, que retiram de
seus cidadãos toda possibilidade de exercer oposição, a não ser a religiosa.
Sem
parlamentos, partidos, imprensa, sindicatos e movimentos estudantis
independentes, sobram as mesquitas, infestadas de clérigos que pregam a
violência. Em um ambiente de quase total ausência de espaço democrático, não há
chance de debate livre sobre a religião, e o radicalismo prospera. Diante da
generalizada percepção de que os muçulmanos estão sitiados pelo Ocidente desde
a colonização europeia, pessoas e instituições ocidentais tornam-se alvo
prioritário.
Uma
lógica semelhante se reproduz na Europa. As comunidades muçulmanas têm enorme
dificuldade em se integrar e geram uma série de indivíduos ressentidos – com a
pobreza, a falta de perspectivas e o preconceito. Alienados e marginalizados,
os jovens muçulmanos, cujos índices de desemprego são ainda maiores que os dos
jovens europeus, por sua vez enormes, ficam à mercê da radicalização propagada
por clérigos extremistas.
É nesses
caldos culturais e sociais, seja na Europa, seja no Oriente Médio, que o
jihadismo floresce.
Na noite
da quarta 7, milhares de franceses ocuparam a simbólica Praça da República, em
solidariedade às vítimas do ataque terrorista e em defesa das liberdades. Foi
um movimento espontâneo e emocionante. Cabe questionar, no entanto, se os
franceses (e ingleses, alemães, norte-americanos etc.) vão tratar o atentado
como uma ofensiva civilizacional do “Islã” contra o “Ocidente”, fortalecendo
extremistas de todos os lados, como desejavam os terroristas, ou vão debater as
raízes da arriscada aposta feita por seus governos – conciliar a aliança a uma
teocracia sociopata com a obrigação de proteger seus cidadãos, defendendo
valores democráticos aqui, mas apoiando seus violadores lá.
Se esse
debate ocorrer – após 11 de setembro de 2001, 7 de julho de 2005 em Londres, 11
de março de 2004 em Madri e, agora, 7 de janeiro em Paris –, provavelmente
ficará claro que não é possível ter o melhor dos dois mundos, trazendo o
petróleo e deixando a pervertida interpretação do Islã
promovida pelos sauditas no Oriente Médio.
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