O escritor e jornalista carioca Sérgio Porto (1923-1968), sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, cunhou a sigla FEBEAPÁ – Festival de Besteiras que Assola o País. Porto (que também inventou a expressão “samba do crioulo doido”, referindo-se ao non sense usual dos sambas-enredo), notou que no início da ditadura militar, entre 64 e 68, houve um drástico aumento das declarações públicas imbecis.
Certamente o clima de solenidade e patriotada também estava por trás do besteirol. Porto morreu em 68, portanto não teve tempo de ver a criação, no final do ano de 1969, da sinistra matéria obrigatória Educação Moral e Cívica nas escolas. Sinistra não porque tratava de educação, de moral ou de civismo, mas porque fazia parte de um “pacote” ideológico que transformava em inimigos todos os dissidentes do regime militar, incrementado após 1968 e o decreto do AI-5. A seriedade excessiva sempre anda perto do ridículo.
O inimigo dos milicos era tratado como “inimigo do país”. É interessante como a realização desta copa do mundo em 2014 tenha disparado comportamentos tão similares aos da época da ditadura. Por um lado, nunca se falou tanta asneira, particularmente após a derrota para a Alemanha por 7 a 1. Foi um bombardeio de termos descabidos como “humilhação” e “vexame”. Eu vi gente reclamar deste artigo do Adam Gopnik na New Yorker (leia aqui), mas para mim ele faz todo o sentido.
“Sabemos, embora essa seja uma verdade esquecida entre os brasileiros, que foi apenas uma derrota em um jogo. Não deveria ser – e de fato não foi – uma ‘humilhação nacional’ ou algo parecido. Foram só onze caras tendo um dia ruim, a maioria deles milionários que trabalham e moram no exterior”, escreveu Gopnik. Porque os onze milionários encarnariam o “espírito nacional” é uma coisa que também me escapa.
O que incomodou alguns leitores brasileiros foi a comparação com a guerra. Gopnik explica que o início da primeira Grande Guerra foi impulsionado pelo medo irracional de “humilhação nacional”. E que “honra nacional” e “humilhação” são termos-chave nessa linguagem bélica perversa. Para quem achou o paralelo com o horror da guerra indevido, o nosso paspalho-mór, Luciano Huck (que tentou capitalizar em jogadas marketeiras como a do #SomosTodosMacacos), encarreegou-se de confirmá-lo no sábado.
Conversando em seu programa com Galvão Bueno, Huck comparou o 7 a 1 contra o Brasil com o 11 de setembro e a destruição das Torres Gêmeas de Nova York, quando morreram quase três mil pessoas. O próprio Galvão – que não é nenhum mestre da sobriedade – teve que dizer que Huck estava exagerando. É a volta do Febeapá. Imagine Galvão Bueno mandando você baixar a bola. :)
Como sugeriu Gopnik, há uma chave aí: a de que sob ideologias autoritárias a discordância atrai sempre um componente de “humilhação”. Como nas religiões monoteístas, há uma moral única, anterior e exterior às pessoas, que não pode ser desafiada. É engraçado como em nosso país psiquicamente colonizado a idéia de “humilhação” está sempre presente. É só digitar o termo “humilha” no google ou no youtube para acessar centenas de conteúdos em que alguém é supostamente “humilhado”. Vá lá e veja que em quase nenhum há “humilhação” – só discordância.
Não há ridículo na discordância. Há ridículo, isso sim, na concordância forçada, na crença sagrada da autoridade. Como acontece na Coréia do Norte, onde os ditadores de plantão usam títulos como “Querido Líder Que É Uma Encarnação Perfeita da Aparência Que Um Líder Deve Ter”, “Estrela Brilhante da Montanha Paektu”, Glorioso General que Desceu do Céu” e “Maior Encarnação do Amor Revolucionário Entre Camaradas” – como se fossem fantasias de luxo de Clóvis Bornay.
Um exemplo mais próximo é o do presidente venezuelano Maduro, que disse que Hugo Chávez apareceu para ele na forma de um passarinho, ou que o rosto do finado surgiu numa escavação do metrô em Caracas. A semelhança bizarra com a aparição de Cristo num fiofó de cachorro não é acidental. Como se vê, a crença na autoridade sagrada e na “humilhação” da discordância é que é sempre ridícula, seja à direita ou à esquerda, na política ou na religião.
O governo da presidente Dilma começa a demonstrar sérios sintomas dessa doença dúplice. Logo depois de Dilma declarar à repórter Renata Lo Prete (aos 6' do segundo bloco) que "O Brasil conseguiu construir uma política federativa de segurança (...) Todos contribuíram para garantir um padrão de segurança, nós planejamos juntos, nós executamos juntos", uma megaoperação no Rio de Janeiro prendeu 19 ativistas envolvidas com manifestações políticas. As prisões, “preventivas” e sem fundamento legal, lembram os tempos da ditadura. Nove outros ativistas foram considerados “foragidos”. Quanto mais besteira faz o governo, mais repressivo se torna. Seria ridículo, se não fosse sinistro.
Melhores eram os tempos em que, observou alguém, os jogadores não sabiam nem cantar o hino nacional, como Garrincha (esse não sabia às vezes nem qual era o país adversário), mas sabiam jogar. Não havia uma crença no “direito divino brasileiro à vitória no futebol”, esse amigo do ridículo, mas intuia-se como chegar a ela. Sem Cristo nem uma pátria autoritária na cabeça, mas com o Exu nas pernas. Aí sim o melhor “espírito nacional” estava encarnado.
Torturada pela ditadura em 1970, a ativista Dilma, ao fim de tanto tempo, virou ela mesma uma pró-ruralista, refém das chantagens políticas das organizações religiosas mais moralistas, adepta do populismo futebolístico e da repressão violenta ao direito de manifestação. Ou seja, na prática muito parecida com os milicos que a encarceraram – mesmo que ela se diga o contrário deles. A pergunta que não quer calar é: a tortura não funcionou, ou funcionou muito bem? O Febeapá nunca acaba.
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