Cadê Roger, cadê Roger, cadê Roger, ô?, perguntava Chico Science na música “Macô”, de 1996. Roger também esteve na ocupação pacífica do Cais Estelita, em Recife. Ou melhor, esteve, enquanto havia ocupação. Na terça feira, bem no dia do segundo jogo do Brasil na copa, a ocupação foi invadida pela polícia, na porrada e bomba, numa verdadeira operação de guerra. E desrespeitando todos os acordos com órgãos do governo municipal, estadual e federal feitos durante as conversas desde a ocupação, no dia 21 de maio.
Acontece que o movimento em torno do uso urbano do cais Estelita é maior e mais importante para o Brasil do que a copa. As origens do caso podem ser conferidas aqui neste texto – o histórico que levou à ocupação. E porque digo que é mais importante? Porque o embate central do Brasil se dá, hoje, entre duas concepções de país. E esse embate está perfeitamente representado na briga pelo Estelita, e não nos campos de futebol.
É por isso que é tão central esse choque de simbologias, a de uma Recife-Miami, de um globalismo novo rico, evocada pelos coxinhas da cidade, versus a Recife global-local-genial que vem sendo inventada desde o manguebeat, na década de 90. Na verdade essa invenção vem de antes, do início dos anos 70 e a psicodelia local, antropofagizando gostosamente as raízes negras-indígenas-mediterrâneas.
Essas raízes são um amálgama de mistérios que alimenta o que pode ser chamado de “nordeste apocalíptico”, um caldo denso que alimentou o baiano Glauber Rocha, o paraibano Zé Ramalho, e os locais, como o jovem Alceu Valença, e Lirinha e do Cordel do Fogo Encantado, por exemplo.
Pois esse apocalipse materializou-se nos cacetetes, chicotes (!), sprays de pimenta e bombas da Polícia, quando o governo estadual decidiu que era o momento de fazer valer a violência contra o amor. Não, não é pieguice o uso do termo. “Amor” é uma boa definição para a vivência que vinha acontecendo na ocupação, um acampamento da cidadania, com oficinas, saraus, palestras, exposições, debates, shows (de gente como Otto, Karina Buhr, Siba). Em quase um mês de ocupação, uma Recife paralela, gentil, saudável, culta e horizontal, emergiu do caos urbano.
Conta Karina Buhr: “hoje é muita gente envolvida nessa luta contra a especulação escrota e ilegal da cidade, que exclui as pessoas e trata como invisíveis os que moram nos arredores, que mata a história, enfeia a paisagem. E deixa a cidade ainda mais quente, porque simplesmente tapa a circulação de ar que existe na beira do rio. Já taparam Boa Viagem nessa faina louca, e a praia tem sombra de prédio (às 15h!) em vez de coqueiros; acabou com a brisa da cidade”.
“A união de tanta gente diferente entre si, com essa resistência enorme, lutando por uma cidade de todos, o cumprimento das leis e a não-destruição do bem comum, é algo que nunca vi acontecer desse jeito. Fui lá na ocupação, fiz um show e passei o dia seguinte no acampamento, junto com todo mundo limpando lixo, capinando, cozinhando, um troço lindo. É um aprendizado diário coletivo, muito precioso, impressionante e agregador. Me emociono a cada segundo, tentando trazer mais gente pra perto, até me dói não estar lá fisicamente o tempo todo”.
Uma vivência colaborativa de artistas, estudantes, professores, ativistas e cidadãos de todo tipo apoiados por urbanistas, artistas gráficos, ciclistas, midialivristas, feministas, fotógrafos, maracatus, e manifestações de gente como a Nação Zumbi, Lenine, Dira Paes, Gregorio Duvivier, Camila Pitanga, Laerte, Sepultura e tantos outros, que postaram fotos e textos ao longo de todo o processo.
Retirados do terreno (inclusive e ilegalmente do terreno da ferrovia, sobre o qual a polícia não teria como intervir), os ativistas da Estelita não arredaram pé totalmente. Estão agora acampados em um viaduto a poucos metros da entrada do antigo acampamento, e continuam organizando as atividades coletivas.
liana cirne lins e karina buhrO Ministério Público Federal, o Instituto dos Arquitetos do Brasil, a Anistia Internacional Brasil, a Universidade Federal de Pernambuco, entre outras entidades, também se manifestaram a favor do movimento. Escreveu o reitor da UFPE, Anisio Brasileiro, antes da invasão da polícia: “Recife tem hoje uma oportunidade rara de discutir seu futuro de forma aberta e democrática. A cidade não pode prescindir de projetos de vulto que reestruturem o espaço urbano no sentido de afastar-nos de um modelo de desenvolvimento excludente, que deteriora o ambiente e a qualidade de vida urbana. Por serem estruturadores, devem passar por discussão aberta, em que atores sociais expressem suas expectativas, críticas, sonhos, e apresentem propostas para a cidade”. Bom resumo de caso. Recife como laboratório de Brasil.
Mas esse reconhecimento não tem encontrado cobertura adequada da imprensa local. As manifestações e apresentações dos artistas são noticiadas a contra gosto pelos jornais e por jornalistas que se mostram coniventes e até se regozijam com a agressão aos manifestantes. A coisa se explica um pouco pelos vínculos dos principais jornais locais: o Jornal do Commercio é ligado a um dos maiores grupos econômicos do estado, o JCPM; e a Folha de Pernambuco ao grupo EQM, com base no setor sucroalcooleiro. O terceiro, o Diario de Pernambuco, também participa do bloqueio jornalístico.
A TV tem o mesmo compromisso com a desinformação: no NE TV 1ª. edição do dia 24 de maio foi veiculada uma matéria chapa branca chamada Arquitetos do Novo Recife Mostram Vantagens do Projeto, sem nenhuma opinião divergente. No dia 27, o NE TV trouxe notícias das manifestações que ocorreram na véspera no acampamento – mas o foco da cobertura foi o engarrafamento causado pela mobilização na avenida do cais. Jornalistas locais relatam pressões e censura na cobertura da ocupação, sempre favorecendo as empreiteiras.
Quanto aos políticos, a especulação é de que o governador João Lyra (PSB) assumiu o ônus da invasão, porque sua base política está fora do Recife, e sua próxima candidatura deve ser a prefeito de Caruaru, daqui a dois anos. O apoio financeiro do consórcio imobiliário Novo Recife e das empreiteiras seria mais importante que o voto popular. No dia da invasão da policia, o governador viajou a Fortaleza para assisir o jogo do Brasil no camarote oficial.
O prefeito, Geraldo Julio (do mesmo PSB do governador, e de Eduardo Campos), tenta se preservar fazendo jogo duplo. Culpa as gestões passadas pelo imbróglio, mas apoiava as gestões anteriores, do PT (que também tiveram relações promíscuas com as empreiteiras e incorporadoras, e aprovaram projetos como as torres do cais de Santa Rita). O prefeito afirma que a licença de demolição permanece suspensa e que preferia uma solução negociada para a desocupação – mas é claro que combinou a tática com o governo estadual. É impossível que não estivesse sabendo da estratégia de repressão violenta.
Na verdade, os vínculos são mais escandalosos ainda. O Secretário de Assuntos Jurídicos da prefeitura é advogado da construtora Queiroz Galvão. O Procurador Geral do Estado é advogado do Consórcio Novo Recife e da construtora Moura Dubeux – e primo de Eduardo Campos. A professora da UFPE e advogada do movimento Liana Cirne Lins, que foi agredida a cacetete, diz: “estamos vivendo um estado de exceção, em que o poder econômico determina as ações do poder do Estado", beneficiando uma parcela ínfima da população, a elite econômica predadora.
lenineOu, como diz Roger de Renor, que de dono de bar (a clássica Soparia, onde aconteciam shows do manguebeat na década de 90) virou homem de rádio e TV, falando a este blog: “o Ocupe Estelita pegou de calça curta os velhos coronéis da política e os financiadores históricos de suas campanhas, as oligarquias dos engenhos, que já bancavam o tráfico de escravos, patrocinaram o regime militar e desde sempre pagam as campanhas eleitorais. Eles têm os jornais, rádios, TVs e os portais, eles compram gente e mandam até na polícia, pois quem paga sempre manda”.
“Eles só não contavam com a rede social. Nós somos milhões de views, publicizando o jogo sujo entre estado e empresas. Nós somos a criatividade furando a velha censura. Respondemos agressão e violência com argumentos, música e delicadeza – e para eles não há nada mais agressivo do que isso”, fulmina Roger.
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