Alguma coisa está fora da ordem quando a reta final do primeiro turno mais disputado das eleições presidenciais recentes no Brasil é sequestrada por… papo de fiofó. Levy Fidelix e sua declaração sobre o aparelho excretor não só tomaram de assalto as redes sociais, como hoje o candidato tem prazo para se explicar para o procurador geral da república. Rodrigo Janot prepara um procedimento atendendo a várias representações (OAB, Luciana Genro, Eduardo Jorge, Jean Wyllys, Renato Simões).
Obviamente Janot não está errado. Fidelix parece mesmo ter cometido um crime eleitoral. Misturou essa verdade central em sua fala (“o aparelho excretor não é reprodutivo”) com uma falha de nomenclatura biológica, um preconceito religioso avesso à realidade (a atividade sexual só serve para fins reprodutivos) e, esse é o crime, concluiu com incitação à perseguição e intolerância.
Além da tirada do aparelho excretor, Fidelix disse, e disse muito a sério, que “nós somos maioria, vamos enfrentar essa minoria (gay)”, e que “o mais importante é que esses que têm esses problemas realmente sejam atendidos no plano psicológico e afetivo, mas bem longe da gente, bem longe mesmo porque aqui não dá”.
Sugeriu que sua visão sobre sexo é moralmente superior às outras (não há maiores problemas nele estar convencido disso, e nem há nada que se possa fazer a respeito). Mas, e aí sim temos um problema, sugeriu também que está disposto a reunir gente para perseguir, constranger e agredir outras visões que não a sua.
Supostamente o procurador geral da república teria coisa melhor a fazer do que enfrentar candidatos folclóricos. Acontece que o folclórico Fidelix, o homem do aerotrem, revelou-se pelo menos em tese um fascista, um inimigo do sistema democrático. O termo fascista não é empregado aqui como xingamento, nem com exagero. Vejamos.
O fascismo pode ser definido como um sistema político autoritário e repressivo, baseado numa ditadura da maioria através do partido que a represente. Com desprezo total pela democracia e pelas tolerâncias políticas, sociais e comportamentais. Não é uma mera questão de “opinião” – é que, concretamente, Fidelix (e ele não é o único a pensar assim) propõe que a maioria (supostamente antigay) afaste os “desviantes” de seu convívio, e os combata (proíba? prenda? mate?). Se nada nem ninguém obriga Fidelix a ser gay, ele também não pode querer impedir ninguém de sê-lo.
O erro lógico, biológico e social de Fidelix se dá em três camadas. Parte de uma declaração incontestável: “o aparelho excretor não é reprodutor”. Não é mesmo. Há um erro nessa frase, mas é outro – o ânus não faz parte do sistema excretor, mas do sistema digestivo. A questão é que Fidelix vai para uma tentativa de silogismo usando uma segunda premissa falsa – e a conclusão é ameaçadora.
Silogismo, segundo Aristóteles, é uma argumentação lógica em três passos, que tem um exemplo clássico: ”Todo homem é mortal/ Sócrates é homem/ Sócrates é mortal”. Acontece que a segunda premissa (não enunciada) de Fidelix é “todo sexo é praticado para fins reprodutivos”. E não é.
Eu arriscaria dizer que, ao contrário, a maioria absoluta dos atos sexuais é praticada para o prazer – sendo que boa parte das gravidezes inclusive são acidentais (o que torna o aborto um corolário perfeitamente aceitável, visto que o sexo prazeroso não deve ser “punido” com uma responsabilidade acidental e inesperada, mas isso já é outro ponto).
O pior vem na conclusão. Por “antinatural”, segundo Fidelix, o uso do aparelho “errado” com outros fins tem que não apenas ser tratado, mas segregado (“bem longe da gente, porque aqui não dá”) e oprimido (“nós somos maioria, vamos enfrentar essa minoria”). Essa “maioria” que Fidelix convoca sequer é maioria – ou a sociedade não praticaria o sexo prazeroso e não-reprodutivo com essa frequência enorme.
No momento em que você lê esse texto, leitor, dezenas de milhões de seres humanos, numa estimativa comedida, estão fazendo sexo legal não-reprodutivo. O que põe por terra a tentativa de “silogismo fidélico”: “o aparelho excretor (digestivo) não é reprodutor/ todo sexo é para reprodução/ o sexo anal é inaceitável”. Lembrando que a fala de Fidelix ainda supõe que todo gay faça sexo anal, e ainda teve o penduricalho do papa (“eu vi agora o papa expurgar do Vaticano um pedófilo”), sugerindo que gay e pedófilo é a mesma coisa.
É assim que chegamos ao nazismo. Aparentado com o fascismo, o nazismo afirmava com ainda mais ênfase que os “inferiores” e “parasitas sociais” deveriam ser combatidos. Sua forma de mobilização e dominação política passava por enunciar um inimigo principal (o povo judeu) e vários secundários (gays, ciganos, eslavos, socialistas, artistas de estéticas “degeneradas”, ideólogos e religiosos tolerantes).
E propunha formas práticas de opressão, chegando finalmente à assim chamada solução final, o assassinato de massas nos campos de concentração. O que difere Hitler de Fidelix? Os bigodes e as idéias são igualmente bizarros (apesar do aerotrem ser bastante mais modesto que as pretensões tecnológicas nazistas). Os seus partidos surgem marginais à sociedade de sua época. Mas aí há uma diferença notável.
Ninguém nunca achou que Fidelix e seu partido fossem “para valer” – nem ele mesmo. Partidos e candidatos nanicos não são ilegítimos. Pelo contrário, as candidaturas de Eduardo Jorge e Luciana Genro (essa apesar do ideário marxista datadão) foram nessa campanha um dos fatores mais politicamente saudáveis.
Escaparam do circuito de meias-verdades e mentiras inteiras que assolou o marketing das candidaturas ditas principais, e arejaram um pouco o debate de idéias. A declaração bombástica e inesperada de Fidelix (provavelmente tentando surfar o eleitorado moralista neopentecostal) partiu exatamente de uma pergunta-provocação de Luciana, sobre a questão dos direitos dos casais gays, no debate da tv Record.
Só que Fidelix, além de nanico, é de um partido “fisiológico”. O termo é um apelido dado aos partidos e candidatos “profissionais” que parasitam o imperfeito sistema político brasileiro, tungando grana do fundo partidário (no caso do PRTB de Fidelix foi quase 1 milhão só de janeiro a setembro deste ano, mais de 6 milhões desde 1996) e alugando seu tempo e suas legendas com objetivos não-ideológicos, oportunistas. A piada fica ainda mais sem graça.
Uma espécie de mistura de Hitler com Tiririca, Levy Fidelix não apenas não é o ombudsman do fiofó alheio. Fisiologicamente falando, ele É o parasita, o habitante da flora intestinal do aparelho “excretor” da política nacional. Quando tenta tomar o centro do sistema, provoca a diarréia ideológica.
E o médico no caso é o procurador geral, que disse: “ser contra homossexuais, ou contra a união entre eles, é uma opinião protegida pelo direito à liberdade de expressão. (Mas) a fala de Fidelix é um ‘convite à intolerância e à discriminação, permitindo, em princípio, sua caracterização como discurso mobilizador de ódio’”. O ex-folclórico Fidelix comprou uma pauta moralista, e está pagando caro por ela.
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